Por
Renato Souza, Leonardo Cavalcanti e Breno Forte
Um
edital aberto pela Polícia Rodoviária Federal, que se transformou
em um contrato para a aquisição de pistolas, revela os bastidores
de uma disputa bilionária pelo mercado de armas no Brasil.
Documentos de uma audiência realizada pela corporação no último
dia 18 de outubro, em Brasília, que contou com a participação de
oito empresas, duas nacionais e seis estrangeiras, em busca de um
nicho comercial com números iniciais na casa dos R$ 2,5 bilhões,
mas que, a partir do lobby e de eventual queda do Estatuto do
Desarmamento, pode atingir valores hoje ainda incalculáveis.
A ata
do encontro entre integrantes da Polícia Rodoviária e
representantes das empresas revela o objetivo de avaliar a capacidade
nacional e internacional para o fornecimento de armas para
corporações brasileiras. O motivo inicial era avaliar o cenário
para futura aquisição de pistolas semiautomáticas pela Polícia
Rodoviária. No local, além de empresas brasileiras, como a Taurus e
a estatal Imbel, compareceram representantes de fabricantes de armas
de países como a Itália, Estados Unidos, Israel, Áustria,
República Checa e Alemanha. Os prepostos das companhias
multinacionais eram, na maioria, militares da reserva das Forças
Armadas ou policiais brasileiros.
Um
levantamento realizado, a partir do cruzamento de números de
policiais e de seguranças com o preço médio das armas, aponta para
um mercado promissor, ainda que excluídas as vendas para civis —
com a eventual queda das regras de acesso a armamentos, o potencial
de negócio será ainda maior. E é de o-lho nessas cifras que
empresas estrangeiras se esforçam para ganhar espaço no território
nacional. A negociação concretizada pela PRF evidencia isso.
A
partir do que seria o objetivo da audiência, empresas participantes
do encontro se surpreenderam com o anúncio, cerca de um mês depois,
de que a companhia austríaca Glock saiu vencedora do processo
seletivo para a compra de 10 mil armas para todos os agentes da PRF.
O resultado foi publicado no Diário Oficial da União (DOU), no dia
20 de novembro. Antes de firmar contrato com a Glock, a PRF publicou
um Extrato de Inexigibilidade de Licitação. Ou seja, a compra das
pistolas calibre 9mm ocorreu sem um processo licitatório formal,
algo que daria mais transparência e legitimidade ao processo. O
valor do contrato é de R$ 18 milhões, e a PRF informa, na
publicação oficial, que a empresa estrangeira foi escolhida por
conta da “inviabilidade de competição”.
Estiveram
presentes na audiência representantes da Taurus (brasileira), Imbel
(Exército), Israel Weapon Industries (Israel), Beretta (Itália),
Smith & Wesson (EUA), Sig Sauer (Alemanha) e CZ (Checa), além da
Glock. O presidente da Associação Nacional da Indústria de Armas e
Munições (Aniam), Salesio Nuhs, afirma que uma compra dessa
amplitude, sem licitação, gera uma competição desleal entre as
empresas nacionais. “A aquisição sem licitação tem servido de
atalho para o não enfrentamento de uma questão extremamente
importante”, disse Nuhs, que é da direção da Taurus. “A
aquisição do produto estrangeiro tem isenção de tributos e o
fornecedor brasileiro recebe alta carga tributária e altos custos
regulatórios para atender a legislação, o que não ocorre com os
produtos estrangeiros, isso gera desvantagem competitiva.”
Atualmente,
levando em conta o contingente das Forças Armadas, da Polícia
Militar dos estados, Polícia Civil, PRF, vigilantes de empresas
privadas e guardas-civis estaduais, o Brasil possui um mercado aberto
para a aquisição de 1,4 milhão de armas. Somente a Polícia
Militar conta com um contingente nacional de 421 mil homens — 220
mil militares compõem as fileiras do Exército e 118 mil, as
polícias civis.
A
possibilidade de negócio que gera a cobiça de empresas do mundo vai
além desses números. A portaria nº 234, de 1989, e a nº 02, de
março de 2014, do Comando Logístico do Exército Brasileiro,
autoriza que cada policial possa comprar duas armas, fora a que
utiliza durante o serviço e é fornecida pelo Estado.
Mudanças
na Portaria R-105, do Exército, responsável pelo controle de armas
dos órgãos de segurança, devem flexibilizar a importação de
armas e já autorizam a presença de fábricas estrangeiras no país.
No entanto, há dois meses, o texto segue sob análise da Casa Civil.
O general de Brigada Ivan Neiva, da Diretoria de Fiscalização de
Produtos Controlados do Exército (DFPC), afirma que a negociação
entre PRF e Glock passou pelo processo de avaliação do Exército.
“Existem
tabelas que estabelecem o tipo e a quantidade de armas que cada um
desses órgãos podem ter. Então quando eles vão comprar, eles nos
informam e nós verificamos se essas armas vão entrar na tabela. A
PRF foi autorizada a importar essas armas. No momento, há um
processo que não passa por nós”, diz Neiva. Nos últimos meses,
aumentou no Congresso a pressão para a derrubada do Estatuto do
Desarmamento, que deve se tornar maior com as estrangeiras atuando no
Brasil. A “bancada da bala” colocou em pauta projetos que mudam a
legislação para liberar o porte irrestrito a civis. É o caso do
projeto 480/2017, que tem como objetivo excluir artigos da lei que
determinam a apresentação de uma “declaração de efetiva
necessidade” para obtenção de armas. A proposta segue na Comissão
de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.
Falhas
A
abertura de mercado ocorreu, pelo menos de imediato, em decorrência
de falhas apresentadas por pistolas modelo 24/7, da Taurus — um
espaço antes monopolizado pela companhia privada e pela estatal
Imbel agora se torna alvo de lobby mundial. O professor Arthur
Trindade, coordenador do Núcleo de Estudos sobre Violência da
Universidade de Brasília (UnB), teme que a cobiça das empresas
estrangeiras gere aumento de pressão para a abertura ainda maior do
comércio nacional desses produtos. “A importação de armas do
exterior é uma demanda antiga das instituições de segurança
pública, por conta da qualidade baixa das armas nacionais, onde
existe o monopólio da Taurus. Por outro lado, esse interesse das
organizações estrangeiras no Brasil pode aumentar o lobby para
abertura de mercado, seja no setor público ou para a população
civil”, afirmou.
Procurada
pela reportagem do Correio,
a Polícia Rodoviária Federal informou que “a escolha se deu após
uma série de estudos e ensaios científicos, trabalho sistemático e
sistematizado, buscando opção de armamento que, efetivamente, possa
atender às necessidades e especificidades do policial rodoviário
federal”.
Representantes
da Smith & Wesson no Brasil afirmam, em nota, que receberam “com
surpresa” a informação de que a PRF decidiu adquirir as armas sem
licitação. “Estamos absolutamente convencidos de que a via eleita
da inexigibilidade de licitação para aquisição das pistolas, por
parte da PRF, fica longe de se amoldar aos critérios estabelecidos
por lei. Estamos avaliando com os nossos parceiros comerciais a
hipótese de questionar em juízo a opção da PRF”. As demais
empresas citadas na reportagem não se manifestaram sobre o tema.
Memória
Quebra de monopólio
Na
última sexta-feira, a empresa suíça Ruag fechou contrato com o
governo de Pernambuco para a instalação de uma fábrica de munições
no estado. Reportagem do Correio,
publicada em outubro, revelou com exclusividade que a companhia
estava em negociação para instalar uma unidade no estado, após
abertura de mercado para empresas estrangeiras por parte da União,
quebrando o monopólio da brasileira CBC. De acordo com o governo
local, serão investidos R$ 58,5 milhões em 2018. Essa será a
primeira fabricante estrangeira desse setor a se instalar no país.
1 Comentários
O pessoal do Correio Braziliense não esconde a ideologia desarmamentista. Difícil mesmo é depender da Taurus e Imbel.
ResponderExcluirObrigado pela sugestão.