Por Luiz Fernando Ramos Aguiar
Não é novidade no país que as liberdades fundamentais se encontram fatalmente ameaçadas, prisões políticas, invasão de competências entre os poderes, desrespeito ao devido processo legal e o fechamento de empresas de jornalismo se tornaram rotina. O mais assustador é que essas coisas estejam acontecendo sem que haja, praticamente, nenhuma reação das forças políticas, da opinião pública ou de qualquer corporação do consórcio da imprensa “profissional”. Nesse cenário caótico existe uma classe que tem se tornado alvo preferencial das medidas antidemocráticas e autoritárias, os profissionais de segurança pública. De forma especial os policiais militares.
Nos últimos anos, as forças progressistas (socialistas e comunistas) têm assistido atônitas ao crescimento da credibilidade e da admiração das forças de segurança por parte da população. Um dos reflexos mais evidentes desse fenômeno foi o aumento da participação de profissionais, oriundos das corporações policiais, nos cargos eletivos. Nas últimas eleições conquistaram desde cargos de governadores de estado, como em Santa Catarina, e centenas de cadeiras nas casas legislativas em todo o país.
Outro campo onde os policiais têm conquistado espaço cada vez maior, e mais relevante, são as redes sociais. Os perfis e canais que têm como tema central as corporações policiais, a rotina dos profissionais e a estética militar têm angariado milhões de seguidores que, em sua maioria, não têm relação direta com as forças de segurança. Apesar do esforço brutal das empresas da grande mídia e dos influenciadores “politicamente corretos” em descrever os policiais como pessoas violentas, preconceituosas e ignorantes e suas corporações como forças opressoras e brutais, a realidade, e a quebra do discurso hegemônico, fazem com que as pessoas comecem a enxergar as coisas com seus próprios olhos. O velho discurso de que as forças de segurança estariam em confronto direto com os direitos e garantias dos cidadãos não cola mais.
Esta reversão do quadro de desmoralização da imagem dos policiais e de suas corporações tem gerado medo nas esferas esquerdistas e despertado agentes em todas as esferas do poder constituído no sentido de calar a voz desta classe. Nas manifestações convocadas no último 7 de setembro, observamos aterrorizados manifestações e ações da imprensa, do judiciário e, principalmente de chefes dos executivos estaduais com o objetivo de retirar dos policiais militares o direito a livre manifestação, à liberdade de expressão e ao direito de reunião.
O governador de São Paulo, João Doria, e mais oito governadores prometeram punir qualquer policial que participasse das manifestações. Mesmo que os profissionais estivessem de folga, desarmados e à paisana. O governador de São Paulo destacou-se pela exoneração do Coronel Aleksander Lacerda, à época ele respondia pelo Comando de Policiamento do Interior (CPI) 7, em Sorocaba. A transgressão do oficial foi ter convocado, através de suas redes sociais, seus seguidores para participarem das manifestações que ocorreram no dia 7 de setembro.
Em Brasília, o ataque aos direitos dos policiais militares foi ainda mais grave, já que partiu de um órgão que deveria ser o guardião dos direitos humanos e das garantias fundamentais dos policiais, o ministério público. Ainda por ocasião das manifestações do dia da independência, os membros do ministério público militar, usando como fundamento o art.45 da Lei nº 7.289/84, que proíbe quaisquer manifestações coletivas de policiais militares da ativa da PMDF, tanto sobre atos de superiores quanto as de caráter reivindicatório ou político, se manifestou pelo impedimento da participação dos policiais nas manifestações. O que causou estranheza já que, nas últimas décadas, o órgão jamais interpretou esta lei para proibição da manifestação da opinião pessoal dos profissionais. Ao contrário, os policiais militares têm participado de modo ativo da vida pública, sempre respeitando as leis e as restrições impostas pela condição profissional. Mesmo em situações extremas, como em movimentos reivindicatórios, com ameaças de greves ou operações “padrão” ou “tartaruga” (claramente ilegais), jamais se viu uma manifestação dos promotores nesse sentido.
Mas foi no Congresso Nacional onde nasceu uma das manobras mais covardes perpetradas pelas forças políticas contra a participação dos policiais militares na vida pública, a lei que impede a candidatura de policiais ativos. Esta excrecência legislativa coloca de uma vez por todas os profissionais de segurança pública em uma categoria subalterna de cidadania. A restrição foi uma resposta dos barões da política ao resultado das últimas eleições, quando o fortalecimento da chamada “bancada da bala”, formada por políticos oriundos das forças policiais, deixou clara a força política da categoria. Obviamente, os políticos profissionais não poderiam deixar esta onda crescer.
A previsão de que, após os sucessivos ataques, os poderosos dariam aos policiais um 2022 mais tranquilo não poderia estar mais equivocada. Desta vez, a castração dos direitos não veio de inimigos externos, mas do alto-comando da Polícia Militar do Estado de São Paulo. O presente de ano novo para a tropa foi a DIRETRIZ Nº PM3-006/02/21, que regula o uso das redes sociais pelos policiais militares do estado. A peça mais autoritária já produzida por uma corporação policial contra seus efetivos. A norma praticamente impede que os policiais utilizem as plataformas, a não ser que escondam sua profissão. Diz o item 6.2.1:
(...) é vedado ao policial militar (da ativa, agregado ou veterano), por meio de contas pessoais em mídias sociais e aplicativos mensageiros, a criação, edição, postagem ou compartilhamento de conteúdos que se relacionem, direta ou indiretamente, com a Polícia Militar, a exemplo de vídeos, imagens, áudios, textos, mensagens e links, e, particularmente:(leia o documento na íntegra).
Com um comando desses, os policiais nem precisam se preocupar com os inimigos externos; basta confiar na competência de seus superiores para restringir e cassar seus direitos de manifestação, não apenas de opinião mas também do orgulho de pertencer a uma das forças mais respeitadas e admiradas do país.
Alguns defendem que os profissionais utilizam a imagem policial militar para se promover, obter reconhecimento ou, até mesmo, vantagens financeiras. Mas é realmente um crime, ou uma transgressão disciplinar, um profissional obter reconhecimento em decorrência da profissão que exerce? Ou essa é uma prerrogativa negada apenas àqueles que diariamente arriscam suas vidas para proteção dos direitos e garantias dos demais cidadãos? Será que é errado um policial desejar ser admirado pela profissão que exerce? Pelos marginais que prende? Pelo patrulhamento que faz nas madrugadas? Chega a ser impensável que esta legislação tenha nascido no seio da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Sobre os abusos cometidos por policiais na internet o que é mais coerente? Punir os casos pontuais ou restringir a liberdade de todos os membros da corporação?
A legislação é tão draconiana que impede os policiais até de divulgar seu conteúdo, conforme o item 6.4.1.1:
(...) desenvolver estratégia de divulgação referente às vedações, faculdades e boas práticas constantes nesta Dtz, voltada aos policiais militares da ativa, agregados e veteranos (...).
Ou seja, a norma é tão ruim que os policiais não devem desenvolver “estratégias” para sua divulgação. Provavelmente, em decorrência da profunda insatisfação que a diretriz trouxe. Mas, como se trata de um documento público, oficial e legal, qual a justificativa legal para impedir sua divulgação? E este é outro problema do documento: ele é contraditório.
Mesmo não gostando de como os policiais têm se expressado nas redes a corporação não pode negar que as publicações de sua tropa, em suas redes particulares, fizeram mais pelo fortalecimento da imagem da corporação do que todas as gestões oficiais de comunicação social desde a sua primeira geração. Por isso mesmo, ao mesmo tempo que pretendem controlar as redes, não querem perder seu poder de comunicação exponencial. Nesse sentido o item 6.2.2 diz:
(...) é facultado ao policial militar, desde que observadas as prescrições regulamentares e normas em vigor, os deveres éticos, o respeito e o decoro, dar publicidade, através das mídias sociais e aplicativos mensageiros, a conteúdos relacionados a:
6.2.2.1. solenidades e formaturas policial-militares;
6.2.2.2. casamentos com uso de uniforme (vide previsões do Regulamento de Uniformes da Polícia Militar);
6.2.2.3. campanhas humanitárias, solidárias ou filantrópicas, com a participação da Polícia Militar, desde que os conteúdos tenham sido, previamente, tramitados e aprovados pelos canais oficiais de comunicação social institucionais.
6.2.3. faculta-se também a policiais militares, por meio de aplicativos mensageiros, a composição de grupos, inclusive, se for o caso, com a interveniência de civis ou representantes de outros órgãos, para tratar de temas e assuntos profissionais, estudos, pareceres e aperfeiçoamentos. Nessas ocasiões, os policiais militares poderão identificar-se e manifestar-se de acordo com a condição de militar do Estado e função desempenhada, representando suas OPM e, estritamente, para discorrer sobre o tema em debate (...).
Ou seja, se for para divulgar estritamente os eventos corporativos, ou para trabalhar, os policiais militares podem, de forma estritamente controlada, utilizar as redes sociais. Dessa forma, a comunicação social da força nem precisa se preocupar em divulgar e publicizar as atividades corporativas.
Os policiais em todo o país estão com seus direitos cerceados cada dia mais fragilizados, a situação paulista é ainda mais grave. Não por acaso a desvalorização dos profissionais também chegou à remuneração dos militares, que hoje são os que possuem a pior remuneração do país, mesmo estando entre os profissionais mais capacitados e técnicos entre todos os entes da federação.
Em todas as nações democráticas, a última barreira na defesa dos direitos individuais e, em especial, do direito a livre expressão sempre foi a imprensa. Pela natureza da atividade jornalística, seus membros sempre foram ferrenhos defensores dos direitos das pessoas em defender suas ideias. Como caixas de amplificação de fatos e narrativas, as redações funcionavam como uma trincheira, resistindo ao autoritarismo. Entretanto, esta era chegou ao fim e as redações das principais empresas da mídia tradicional se tornaram uma caricatura grotesca daquilo que já representaram.
Não por outro motivo jornalistas, apresentadores e âncoras não sentem nenhum constrangimento em defender medidas evidentemente autoritárias e antidemocráticas como prisões políticas, fechamento de órgãos de mídia, prisões ilegais e inquéritos que não respeitam os mínimos parâmetros do devido processo legal. Não seria diferente no caso dos policiais, que historicamente têm servido de alvo dos mais perversos preconceitos por parte do jornalismo “profissional”.
O que os lacradores não estão enxergando é que ao afastar os profissionais da segurança pública da convivência natural da sociedade cria-se um ambiente para o desenvolvimento de uma força policial autoritária e submissa aos caprichos de governantes autoritários. Os policiais, em especial os militares, já estão sob a égide de estatutos e leis muito mais restritivas do que o cidadão comum. Muitas vezes operam contra suas convicções pessoais, sob pena de cometimento de crime militar. Quando a sociedade permite que estas restrições se tornem ainda mais severas, empurram os policiais para um caminho sem volta, que pode realmente transformar as corporações naquilo que a imprensa sempre alardeou, ainda que de forma injusta, capachos do governo.
Sem espaço na mídia, na política, nas redes sociais ou nos tribunais os policiais militares podem acabar sem alternativas, a não ser cumprir ordens mesmo que sejam injustas, autoritárias ou antidemocráticas. O tiro pode sair pela culatra, ou esse é projeto?
* Luiz Fernando Ramos Aguiar é Major da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), especialista em segurança pública e colunista da revista Blitz Digital
Fonte: Gazeta do Povo
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